Nícolas Pasinato
Desde que foi regulamentada a Lei Complementar 190/2022, no início de janeiro, deu-se início a uma disputa jurídico tributária, que, em princípio, não deve terminar tão cedo. A decisão regulamenta a cobrança do Difal (Diferencial de Alíquota) de não contribuinte e de contribuinte de ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), em âmbito nacional. O principal impasse da questão está na data que esse tributo passará a ser cobrado, se dentro do exercício de 2022 ou somente no próximo ano.
Antes de entrar neste imbróglio legal, vale destacar que o Difal nada mais é do que o pagamento que se dá - em operações interestaduais - entre a alíquota interna que o estado onde se localiza o consumidor cobra, descontado o valor da alíquota interestadual aplicada para aquela mercadoria. "Se a alíquota interna do estado de destino é de 18% e a alíquota interna do estado de origem é de 12%, há uma diferença de 6%. É esta diferença que acaba sendo recolhida para o estado consumidor do produto", exemplifica a especialista tributária da IOB Renata Queiroz.
O diferencial de alíquota existe desde a implementação da Constituição Federal de 1988. O que mudou de lá para cá foi que, até meados de 2015, ele incidia somente aos contribuintes de ICMS. A partir de 2016, porém, a alíquota passou a ser recolhida também em casos de consumidor final não contribuinte desse imposto.
"Como não cumulativo que é, quando a mercadoria era entregue a um contribuinte, parte do ICMS ficava no estado de origem, onde fica o vendedor, e parte era arrecadado no Estado de destino, pois aquela empresa iria comercializar internamente a mercadoria. Porém, essa sistemática não ocorria quando se vende mercadoria para um não contribuinte de ICMS, como pessoas físicas", explica o contador, advogado com Especialização em Direito Tributário e Gestão Pública André Macêdo.
A inclusão de não contribuintes do ICMS ocorreu no mesmo momento em que se observava um aumento considerável do comércio eletrônico. Passou a ser cada vez mais fácil adquirir mercadorias de fora do estado onde se situava o comprador, o que gerou um desequilíbrio favorável aos grandes polos de produção e comercialização de e-commerce, geralmente nas regiões Sudeste e Sul.
"Como planejamento fiscal, os estados concediam regimes para que grandes comerciantes de e-commerce se estabelecessem em seus estados, já que venderiam nacionalmente e o ICMS ficaria para aquele estado, concedendo benefícios fiscais. Assim, a guerra fiscal foi instalada", acrescenta Macêdo.
Para resolver esse problema, nasceu a Emenda Constitucional 87/2015, cujo objetivo era repartir as receitas entre os estados de forma mais equilibrada, gerando desenvolvimento econômico também nos estados de destino desses produtos. "O Difal veio para deslocar parte do ICMS para o Estado onde está o consumidor da mercadoria. Assim, diminui o peso dos benefícios fiscais e ainda protege o comércio local. Essa foi sua finalidade", sintetiza o contador e advogado tributarista.
O que era para ser uma solução, porém, acabou gerando um novo impasse. Em fevereiro de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a cobrança do Difal do ICMS é inconstitucional quando o destinatário for o consumidor final não contribuinte do ICMS. A corte condicionou a cobrança do Difal/ICMS à edição pelo Congresso Nacional, ainda no exercício de 2021, de uma lei complementar para regulamentar devidamente a questão, sendo os efeitos produzidos a partir do ano seguinte à conclusão do julgamento, ou seja, em 2022.
A cobrança do Difal foi, de fato, regulamentada pela Lei Complementar 190/22. A origem do problema está na data de sanção: 4 de janeiro de 2022. Ou seja, diferente do que previa a decisão do STF. Desde então, uma série de teses jurídicas divergentes debatem sobre a possibilidade da norma produzir efeito ainda neste ano.
Estados e contribuintes divergem sobre validade do Difal ainda este ano
Independente das opiniões divergentes, a polêmica deverá chegar à Justiça, diz André Macedo
ANDRÉ MACEDO/ARQUIVO PESSOAL/JC
Há diferentes teses jurídicas em torno da vigência da cobrança do Difal/ICMS. Defendida por parte dos estados, uma delas defende que a legislação complementar deve produzir efeito desde a sua publicação, uma vez que a lei não cria ou eleva tributos, apenas regulamenta uma cobrança que já era realizada com base no Convênio ICMS 93/2015.
Outra, protagonizada por contribuintes e advogados tributaristas, defende que a cobrança do Difal/ICMS deve respeitar a anterioridade nonagesimal, que determina que os estados não podem cobrar tributos antes de decorridos 90 dias da data da publicação da lei de instituição ou aumento, bem como da anterioridade anual, a qual afirma que a cobrança não pode ser realizada no mesmo exercício financeiro da publicação da lei.
Há ainda estados defendendo que a lei complementar deve atender somente ao princípio da noventena. Com isso, seria necessário aguardar 90 dias após a publicação para passar a valer. Por fim, há quem defenda a vigência do Difal somente após três meses da disponibilização de um novo portal envolvendo a matéria.
"Temos quatro teses discutidas: a de aplicação do princípio da anterioridade e da noventena; da aplicação só do princípio da noventena; da aplicação de nenhum desses princípios e, por fim, de recolhimento no terceiro mês subsequente da disponibilização do portal que nasce com a Lei Complementar 190", resume Queiroz.
Ações de inconstitucionalidade envolvendo a vigência da Lei Complementar também começam a surgir, como a ADI 7066 da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (ABIMAQ) e a ADI Nº 5469 da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (Abcomm), ambas defendendo os princípios da anterioridade e da noventena.
Na contramão e em paralelo, o estado de Alagoas, por exemplo, impetrou a ADI 7070, que busca garantir a cobrança do diferencial de alíquota de ICMS desde a publicação da LC 190/2022, ou seja, desde 4 de janeiro deste ano.
"É um tema complexo. Independente das opiniões que estão sendo dadas, a polêmica leva ao Poder Judiciário. Quando vemos Estados reconhecendo parcialmente um direito dos contribuintes e outros não, claramente se nota o debate. De toda forma, parece forçoso colocar que existe uma instituição ou majoração de tributo. O que se enxerga, na prática, é uma nova regulamentação para uma manutenção de uma forma de cobrar o ICMS, diferente daquela que se instituiu em 2015", analisa o contador, advogado com Especialização em Direito Tributário e Gestão Pública André Macêdo.
A visão da advogada, diretora jurídica da Abcomm e autora da ADI Nº 5469, Viviana Elizabeth Cenci, por sua vez é divergente: "A lei é válida, mas como altera substancialmente a Lei Kandir criando base de cálculo de imposto, definindo quem é contribuinte, ou seu substituto tributário, majorando o cálculo do imposto; todas estas novas regras só podem ser exigíveis no próximo exercício financeiro, ou seja, as novas regras só podem ser cobradas a partir do início do exercício financeiro de 2023", defende.
Conforme Cenci, a ABComm proporá, via ações coletivas estaduais, que seus associados fiquem isentos da parcela do Difal/ICMS nas vendas para consumidor final com entrega em outro estado durante todo o ano de 2022. "As ações coletivas que disponibilizaremos aos associados serão preventivas, visando impedir a aplicação da lei existente antes do efetivo lançamento tributário. Porém, a cobrança do Difal já está acontecendo em alguns estados para os quais as mercadorias estão sendo remetidas. Diante deste cenário, o fiscalizado deverá buscar apoio para defender-se de cada autuação fiscal separadamente e a ABComm está à disposição para esclarecer como proceder diante destes casos", detalha.
Rio Grande do Sul ainda não firmou posição sobre cobrança da taxa
Com autonomia para regulamentar a cobrança do Difal, alguns estados já manifestaram que colocarão em prática a decisão ainda neste ano. É o caso do Amazonas, Ceará, Goiás, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Roraima, São Paulo e Sergipe. Por meio de sua assessoria, a secretaria da Fazendo do Rio Grande do Sul afirmou que o assunto está ainda sob análise e, portanto, não há ainda uma definição da cobrança ou não do Difal em solo gaúcho.
Levantamento do Comitê Nacional dos Secretários de Estado da Fazenda (Comsefaz) buscou mensurar o impacto aos cofres públicos caso a vigência da legislação passasse a valer somente no próximo ano. Conforme o órgão, os estados podem perder, no conjunto, R$ 9,8 bilhões ao ano em arrecadação caso o Difal não seja recolhido pelas empresas.
Conforme analisa o advogado especialista em Direito Tributário Rafael Pondolfo, a maior parte dos estados defende que a Lei Complementar não institui um novo tributo, pois o Difal já era cobrado dos contribuintes desde a celebração dos convênios do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). "De acordo com o próprio presidente do Comsefaz, André Horta, as anterioridades nonagesimal e anual devem ser observadas quando há criação ou aumento de tributo, o que não seria o caso, já que a cobrança do Difal de ICMS já era regulamentada pelo Convênio ICMS 93/2015", aponta.
Segundo Pandolfo, outro fato que merece ser destacado é que, tendo em vista a autonomia de cada ente federativo para dispor sobre a cobrança do ICMS dentro dos seus estados, existe um grande descompasso sobre o momento a partir do qual a cobrança passará a ser realizada.
"Há estados que afirmam que o Difal deve ser cobrado a partir de janeiro (Piauí e Bahia); estados que pretendem cobrar o Difal em março (São Paulo, Rio Grande do Norte e Ceará); em abril (Amazona, Minas Gerais e Paraná); e estados que ainda não se manifestaram sobre a cobrança do Difal, como Rio Grande do Sul e Santa Catarina", pontua.
Difal
O que é o Difal?
É a parcela do ICMS devido ao estado de destino nas operações interestaduais. Corresponde a diferença entre a alíquota interestadual (12%) e a alíquota interna do estado de destino.
O que o STF decidiu sobre o Difal na ADI 5469?
Inconstitucionalidade da cobrança do Difal com base em convênio expedido pelo Confaz e necessidade de que a matéria fosse regulamentada por meio de lei complementar. Também autorizou a cobrança até o dia 31.12.2021, prazo dentro do qual o Congresso Nacional deveria editar uma lei complementar.
O que prevê a Lei Complementar n. 190/22?
Regulamenta a cobrança do Difal nas seguinte operações e prestações em três hipóteses distintas: no caso de operação interestadual a consumidor que não seja contribuinte, do Difal devido ao estado de destino pelo remetente (vendedor); no caso de operação interestadual com bens para uso e consumo e ativo imobilizado a consumidor que seja contribuinte, do Difal devido no estado de destino pelo destinatário (consumidor); e no caso do serviço de transporte interestadual cujo tomador não seja contribuinte, do Difal devido pelo prestador de serviço.
Desde que foi regulamentada a Lei Complementar 190/2022, no início de janeiro, deu-se início a uma disputa jurídico tributária, que, em princípio, não deve terminar tão cedo. A decisão regulamenta a cobrança do Difal (Diferencial de Alíquota) de não contribuinte e de contribuinte de ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), em âmbito nacional. O principal impasse da questão está na data que esse tributo passará a ser cobrado, se dentro do exercício de 2022 ou somente no próximo ano.
Antes de entrar neste imbróglio legal, vale destacar que o Difal nada mais é do que o pagamento que se dá - em operações interestaduais - entre a alíquota interna que o estado onde se localiza o consumidor cobra, descontado o valor da alíquota interestadual aplicada para aquela mercadoria. "Se a alíquota interna do estado de destino é de 18% e a alíquota interna do estado de origem é de 12%, há uma diferença de 6%. É esta diferença que acaba sendo recolhida para o estado consumidor do produto", exemplifica a especialista tributária da IOB Renata Queiroz.
O diferencial de alíquota existe desde a implementação da Constituição Federal de 1988. O que mudou de lá para cá foi que, até meados de 2015, ele incidia somente aos contribuintes de ICMS. A partir de 2016, porém, a alíquota passou a ser recolhida também em casos de consumidor final não contribuinte desse imposto.
"Como não cumulativo que é, quando a mercadoria era entregue a um contribuinte, parte do ICMS ficava no estado de origem, onde fica o vendedor, e parte era arrecadado no Estado de destino, pois aquela empresa iria comercializar internamente a mercadoria. Porém, essa sistemática não ocorria quando se vende mercadoria para um não contribuinte de ICMS, como pessoas físicas", explica o contador, advogado com Especialização em Direito Tributário e Gestão Pública André Macêdo.
A inclusão de não contribuintes do ICMS ocorreu no mesmo momento em que se observava um aumento considerável do comércio eletrônico. Passou a ser cada vez mais fácil adquirir mercadorias de fora do estado onde se situava o comprador, o que gerou um desequilíbrio favorável aos grandes polos de produção e comercialização de e-commerce, geralmente nas regiões Sudeste e Sul.
"Como planejamento fiscal, os estados concediam regimes para que grandes comerciantes de e-commerce se estabelecessem em seus estados, já que venderiam nacionalmente e o ICMS ficaria para aquele estado, concedendo benefícios fiscais. Assim, a guerra fiscal foi instalada", acrescenta Macêdo.
Para resolver esse problema, nasceu a Emenda Constitucional 87/2015, cujo objetivo era repartir as receitas entre os estados de forma mais equilibrada, gerando desenvolvimento econômico também nos estados de destino desses produtos. "O Difal veio para deslocar parte do ICMS para o Estado onde está o consumidor da mercadoria. Assim, diminui o peso dos benefícios fiscais e ainda protege o comércio local. Essa foi sua finalidade", sintetiza o contador e advogado tributarista.
O que era para ser uma solução, porém, acabou gerando um novo impasse. Em fevereiro de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a cobrança do Difal do ICMS é inconstitucional quando o destinatário for o consumidor final não contribuinte do ICMS. A corte condicionou a cobrança do Difal/ICMS à edição pelo Congresso Nacional, ainda no exercício de 2021, de uma lei complementar para regulamentar devidamente a questão, sendo os efeitos produzidos a partir do ano seguinte à conclusão do julgamento, ou seja, em 2022.
A cobrança do Difal foi, de fato, regulamentada pela Lei Complementar 190/22. A origem do problema está na data de sanção: 4 de janeiro de 2022. Ou seja, diferente do que previa a decisão do STF. Desde então, uma série de teses jurídicas divergentes debatem sobre a possibilidade da norma produzir efeito ainda neste ano.
Fonte: Jornal do Comércio - RS